Pesca de traíra: cara-a-cara com a pré-história
Quem se aventura numa pesca de traíra vai encontrar um peixe voraz!
Até o nome delas demonstra essa característica. A origem da palavra traíra está na língua Tupy, onde o termo tareýra, significa “que arranca a pele”. E em inglês as traíras são conhecidas como wolf fish, que significa peixe lobo. As línguas são muito distintas, mas ambas indicam que este é um peixe feroz.
Uma fera pré-histórica
Os dentes da traíra parecem pequenas estacas muito afiadas. Quando temos uma delas no barco, é bom mesmo ter cuidado. A mordida é dolorosa e provoca muito sangramento.
A cara dela também mete medo. O visual bruto lembra de um toco de madeira e, mesmo de boa fechada, o contorno dos dentes continua visível. É que os lábios do bicho cobrem cada dente individualmente.
O visual, realmente pré-histórico, foi moldado a mais de cinquenta milhões de anos. Naquela época, no período Eoceno, dois importantes grupos de traíras se desmembraram na evolução: a Hoplias lacerdae – que possui parte dos trairões – e Hoplias malabaricus – traíras comuns. Isso foi descoberto através de fósseis encontrados na Bolívia e em Minas Gerais.
Para reforçar todo esse cenário de monstros, as traíras ainda preferem locais sombrios, com pouca luz, com muita vegetação e galhos caídos. Este é o esconderijo perfeito para este peixe carnívoro que caça na emboscada.
Pesca de traíra é diversão garantida
Toda essa cena valoriza nosso peixe. Mas a pesca de traíra não tem nada de amedrontador. Na verdade, ela é muito divertida.
Encontrar um lago forrado de traíras é sinônimo de festa para pescadores esportivos. E é justamente por causa de um encontro desses, que decidi falar sobre as traíras neste post.
Durante uma viagem em busca dos tucunarés da Amazônia, com Barco Hotel Princesa Kalyne, eu e meu sobrinho, Fernando Maglioni, decidimos investir em algum lugar com acesso mais restrito, que não fosse tão acessível a outros barcos. Nosso guia, Derley, nos levou até um pequeno lago às margens do rio Demeni, onde a eficácia dos arremessos era de aproximadamente 50%. Em média, a cada dois arremessos, tínhamos uma traíra embarcada.
E o melhor:
A pesca foi exclusivamente com iscas artificiais de superfície. Mais especificamente com a isca Rebel T20.
Pra chegar até os peixes, enfrentamos um ambiente digno de boas traíras. A entrada do lago era fechada por um emaranhado de galhos e troncos. Com os obstáculos vencidos, navegamos por uma lagoa muito estreita, de água preta. Ao final dela, um longo corredor entre as árvores, bem sombreado, nos convidava aos arremessos.
Esta aventura está no vídeo que faz parte deste post. Confira!
Para o Fernando, o melhor desse peixe está nos botes. Isso sintetiza muito bem uma das características mais marcantes da pesca de traíra.
O bote delas é realmente o grande atrativo. A briga das traíras comuns não é muito intensa. A não ser que ela se esconda entre a vegetação e os galhos. Quando isso acontece, pode ser um desafio trazê-la.
A pesca de traíra é Latino Americana!
Dizem que pesca de traíra pode ser feita em qualquer lagoa. Será?
Na realidade, encontrar traíras por todo canto é um privilégio de quem vive na América Latina. Neste continente, esses peixes aparecem desde os locais mais quentes da Amazônia até ambientes de invernos rigorosos, no Uruguay e Argentina. Lá a água chega a ficar com menos de 20 graus nos meses frios.
Inclusive uma das pescarias de traíra mais interessantes que já realizei foi na região de Esquina, na Argentina. Na época, fiz uma reportagem para o programa Terra da Gente. Tinha tanta tranqueira e vegetação por cima do lago que, às vezes, a isca nem tocava a água. Mas as traíras percebiam a presença da ‘presa’ e atacavam.
Espécies de traíras
Os pescadores dividem esses peixes em basicamente em dois tipos: as traíras e os trairões. Mas para a ciência, este é um gênero de peixes extremamente complexo, que precisa de muitas pesquisas. A variedade de espécies é grande. De acordo que o doutor em Zoologia, pela USP, Osvaldo T. Oyakawa, existem catorze espécies descritas pela ciência e, no futuro, pode ser que outras sejam descobertas. Atualmente, oito delas se encontram no Brasil.
Composição dos três grupos de espécies de traíras
Grupo lacerdae
1-Hoplias australis Oyakawa & Mattox, 2009 (Brasil)
2-Hoplias lacerdae Ribeiro, 1908 (Brasil)
3-Hoplias curupira Oyakawa & Mattox, 2009 (Brasil)
4-Hoplias brasiliensis (Spix, 1829) (Brasil)
5-Hoplias intermedius (Günther, 1864) (Brasil)
“Grupo” macrophthalmus
6-Hoplias aimara (Pellegrin, 1907) (Brasil)
Grupo malabaricus
7-Hoplias malabaricus (Bloch, 1794) (Brasil)
8-Hoplias microlepis (Günther, 1864)
9-Hoplias teres (Valenciennes, 1847)
10-Hoplias misionera Rosso et al., 2016
12-Hoplias argentinensis Rosso et al., 2018
13-Hoplias mbigua Azpelicueta et al., 2015
14- Hoplias patina (Valenciennes, 1847)
Entre as traíras pequenas, uma espécie muito comum é a Hoplias malabaricus, que existe em praticamente todo o Brasil, inclusive na amazônia, e em países vizinhos. Esta espécie é motivo de muita atenção dos pesquisadores.
De acordo com o biólogo Domingos Garrone Neto, professor do curso de Engenharia de Pesca da Unesp – Registro, hoje a H. malabaricus é tratada como um complexo de espécies justamente pela ampla distribuição geográfica. É preciso fazer um estudo genético melhor e é possível que novas espécies sejam definidas a partir deste complexo. “Tem coisas novas saindo em breve”, afirma o professor Domingos.
A Hoplias brasiliensis também se destaca por existir apenas no Brasil, mais especificamente em rios que desaguam na costa leste.
E os trairões também existem por várias regiões do Brasil. Na região sudeste, na bacia do Rio Paraná, eles são representados pelo Hoplias lacerdae. E na bacia amazônica, os gigantes são da espécie Hoplias aimara.
Um dos melhores lugares do mundo para a pesca de trairões é o rio Juruena, no Mato Grosso. Lá, os trairões podem atingir mais de 20 quilos.
Como saber se é traíra ou trairão?
O pesquisador Oyakawa explica que é fácil indentificar se temos uma traíra ou um traírão nas mãos, mesmo que seja um filhote.
Os trairões, sejam H. lacerdae ou H. aimara, tem os dois lados da mandíbula paralelos, como mostrado no peixe “A”, na ilustração que faz parte de um dos estudos do pesquisador. E a língua do trairão é lisa. Com muito cuidado, mantendo a boca do peixe aberta com um alicate de contenção, é possível tocar com o dedo e fazer a prova. Eu já fiz… dá medo, mas você nunca mais vai esquecer.
As traíras do grupo malabaricus tem a língua áspera e a mandíbula em “V”, como pode ser visto no peixe “B”.
Qual é a espécie do trairão?
E, entre os trairões, também há uma forma de reconhecer se temos nas mãos um H. aimara. Basta checar se existe uma mancha escura na pele que existe logo após o opérculo. Ela é bem visível na peixe abaixo, que capturei durante uma expedição no rio Juruena, na Pousada Juruena.
Esta mancha é tão certeira na identificação, que o pesquisador brinca:
-Pode apostar uma cerveja com seus amigos…
E independentemente do tamanho, esses peixes sempre trazem emoção. Basta estar preparado com o equipamento correto e a esportividade será garantida.
Texto: Eduardo Lacerda